Introdução
Quando pensamos em protestos, imaginamos faixas, megafones e ruas ocupadas. Mas há outras formas de resistência — mais silenciosas, profundamente enraizadas e tão políticas quanto. “Plantas em protesto” é uma expressão que nos convida a olhar para as práticas de cuidado com a terra, cultivo comunitário e uso de saberes ancestrais como formas vivas de ativismo ambiental.
Em muitos territórios pelo mundo, as plantas não são apenas recursos naturais ou ornamentos. Elas são memória, cultura e estratégia de resistência. Desde sementes guardadas em silêncio por gerações até hortas criadas em terras retomadas, o uso tradicional das plantas tem sido uma resposta concreta às ameaças ambientais, ao racismo ecológico e à perda de soberania alimentar.
Neste artigo, exploramos como comunidades indígenas, quilombolas, camponesas e periféricas utilizam o conhecimento tradicional das plantas para proteger seus territórios, fortalecer vínculos culturais e combater modelos econômicos destrutivos. Vamos ver como essas práticas desafiam a lógica dominante de exploração e abrem caminhos para formas mais justas e regenerativas de viver no mundo.
O Que é Ativismo Ambiental Enraizado no Conhecimento Tradicional?
Conhecimento tradicional não é apenas um conjunto de práticas antigas — é uma forma viva de entender o mundo, passada de geração em geração por meio da oralidade, da experiência directa e da relação com o território. É o saber de quem cultiva, colhe, cozinha, cura e cuida da terra com respeito e continuidade. Comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, camponesas e tantas outras guardam esses saberes que não se aprendem em livros, mas nos encontros com a mata, o rio e a partilha colectiva.
Esse conhecimento inclui, por exemplo, como usar uma planta para curar uma febre, como preparar o solo sem destruir sua biodiversidade, ou como ler os sinais da natureza para saber o momento certo de plantar. São práticas que envolvem corpo, memória, afeto e uma compreensão relacional com a terra — onde o ser humano não está acima, mas faz parte.
Quando comunidades escolhem manter esses modos de vida, estão também resistindo às formas dominantes de uso do território, que muitas vezes são violentas, extrativistas e colonialistas. Plantar sementes nativas, defender florestas, conservar saberes fitoterápicos ou recusar agrotóxicos são actos de activismo ambiental enraizados no conhecimento tradicional. Não se trata apenas de “preservar a natureza”, mas de preservar modos de vida inteiros.
Movimentos como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil, o Green Belt Movement no Quénia, fundado por Wangari Maathai, e a luta dos povos Adivasi na Índia contra desmatamentos industriais, mostram como o activismo ambiental pode emergir de formas de conhecimento profundamente conectadas ao território. Em comum, esses movimentos colocam o cuidado com a terra, as águas e as plantas no centro das suas lutas — não como recurso económico, mas como parte da própria vida.
Ao valorizar esses saberes, não estamos apenas recuperando práticas sustentáveis. Estamos reconhecendo que há outras formas de habitar o mundo — formas que resistem, cuidam e reexistem.
Plantas como Ferramentas de Resistência
Plantas não são neutras. Elas carregam histórias, identidades e, muitas vezes, tornam-se símbolos de resistência colectiva. Em manifestações, rituais ou ocupações de terra, é comum ver mudas sendo plantadas, folhas em coroas ou pinturas com pigmentos naturais sobre os corpos — cada gesto é um recado político: “Estamos enraizados aqui, e resistimos com a terra.”
Nos territórios indígenas e quilombolas no Brasil, por exemplo, plantar é um acto de autonomia. Cultivar sementes crioulas — aquelas que são passadas de geração em geração — é uma forma de proteger a biodiversidade e rejeitar o controle das grandes corporações sobre a alimentação. As hortas comunitárias e os quintais agroecológicos, tão comuns em periferias urbanas e assentamentos rurais, garantem alimento, saberes partilhados e conexão com as origens.
A prática do reflorestamento comunitário, sobretudo em áreas degradadas, tem sido uma resposta concreta à destruição ambiental. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) combina luta pela reforma agrária com práticas agroflorestais — ou seja, cultivo de alimentos junto com o plantio de árvores nativas. Cada muda plantada num assentamento representa não só alimento no futuro, mas também uma rejeição aos modelos agrícolas que envenenam o solo.
No Quénia, o Green Belt Movement, fundado por Wangari Maathai, mobilizou milhares de mulheres para plantar mais de 50 milhões de árvores. Este acto colectivo foi mais do que uma acção ecológica — foi uma forma de promover direitos das mulheres, restaurar ecossistemas locais e resistir ao autoritarismo.
Na Índia, o Chipko Movement, iniciado nos anos 1970, mostrou como as plantas e as florestas estão no centro das lutas de comunidades locais. Mulheres Adivasi literalmente abraçaram árvores para impedir que fossem derrubadas, num gesto que ficou mundialmente conhecido. Ali, o corpo das mulheres e o corpo da floresta tornaram-se inseparáveis na luta.
Estes exemplos mostram que as plantas podem ser instrumentos simbólicos e práticos na defesa dos territórios, das culturas e da autonomia dos povos. Ao semear, colher ou proteger uma planta, comunidades em todo o mundo cultivam também justiça social, memória e futuro.
Saberes Botânicos como Forma de Autonomia
Conhecer as plantas — saber onde nascem, quando colher, como preparar — é mais do que uma habilidade prática. É uma forma de autonomia. Em muitas comunidades, especialmente aquelas historicamente marginalizadas, os saberes botânicos servem como formas de cuidado, resistência e reconstrução de laços com a terra.
A medicina tradicional, baseada no uso de raízes, folhas, sementes e resinas, é praticada há séculos em territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses. Para além do alívio de doenças, essas práticas são também uma crítica silenciosa ao modelo farmacêutico hegemónico, que muitas vezes se apoia em extrativismo e patenteamento de substâncias retiradas sem o devido reconhecimento dos povos originários. O conhecimento local, nesse contexto, é um acto político de preservação e recusa.
O cultivo de plantas alimentares e medicinais, de forma comunitária ou familiar, fortalece a chamada soberania alimentar — o direito de decidir o que plantar, como produzir e o que comer. Isso inclui variedades crioulas, espécies nativas e combinações que respeitam os ciclos naturais, sem agrotóxicos nem dependência de insumos externos. Em muitas periferias urbanas, hortas medicinais têm se tornado espaços de troca intergeracional, apoio mútuo e fortalecimento da saúde popular.
No Equador, por exemplo, povos indígenas como os Kichwa e os Shuar têm mobilizado o conhecimento tradicional sobre plantas medicinais e espirituais para proteger seus territórios da exploração petrolífera. Não é apenas a biodiversidade que está em risco, mas todo um sistema de conhecimento que liga saúde, espiritualidade, território e história. As plantas ali são aliadas na luta contra o avanço de políticas extrativistas e coloniais.
Na Aotearoa/Nova Zelândia, as comunidades Maori têm liderado iniciativas de proteção e recuperação de espécies nativas, como a kawakawa e o harakeke, fundamentais em práticas cerimoniais, rituais de cura e produção artesanal. Essas ações não apenas mantêm vivas tradições ancestrais, mas também afirmam direitos sobre o território e os modos de vida, num país onde os processos de colonização continuam a afetar a relação com a terra.
O que une essas experiências é a compreensão de que o cuidado com as plantas é, ao mesmo tempo, cuidado com as pessoas, com os territórios e com os futuros possíveis.
Racismo Ambiental e Defesa dos Territórios Verdes
A crise ambiental não afeta todas as pessoas da mesma forma. Comunidades racializadas, indígenas e marginalizadas em diversas partes do mundo estão entre as mais impactadas pela poluição, desmatamento, escassez de água e desastres climáticos. Este fenômeno tem nome: racismo ambiental.
O racismo ambiental descreve como políticas de destruição territorial, exploração de recursos e negligência ambiental recaem de forma desproporcional sobre populações historicamente excluídas. São essas comunidades que, muitas vezes, vivem perto de lixões, mineradoras, grandes empreendimentos industriais ou em áreas vulneráveis a inundações e queimadas. E são também elas que menos têm acesso a recursos para se proteger.
Nesse contexto, a luta pela terra é inseparável da luta pela vida. Quando comunidades lutam para permanecer nos seus territórios ou para recuperar terras tomadas por força do colonialismo e do capital, elas estão também lutando pelas plantas que sustentam sua cultura, alimentação, espiritualidade e saúde. Preservar um bioma não é apenas proteger uma área verde: é proteger uma forma de viver e de se relacionar com o mundo.
Na Amazónia brasileira, povos indígenas como os Yanomami, Munduruku e Tikuna têm defendido seus territórios contra garimpeiros e madeireiros, mostrando que a floresta vive porque há quem a conheça, habite e cuide. Na Nigéria, o povo Ogoni, liderado por Ken Saro-Wiwa, denunciou os impactos da exploração petrolífera da Shell sobre suas terras e rios. Já no sul dos Estados Unidos, comunidades afrodescendentes têm resistido à instalação de indústrias poluentes em regiões historicamente negras, como em “Câncer Alley”, na Louisiana.
Essas lutas mostram que preservar os biomas passa necessariamente por apoiar os povos que os conhecem profundamente — não como objectos de estudo, mas como protagonistas da conservação. São as práticas culturais, os saberes partilhados e as formas comunitárias de organização que mantêm muitos ecossistemas vivos, mesmo frente à pressão constante do lucro e do extrativismo.
Reconhecer o racismo ambiental é um passo fundamental para construir uma justiça climática que seja de fato inclusiva, equitativa e eficaz.
Educação Ambiental e Cultura Viva
A educação ambiental não precisa ser limitada a reciclagem ou gráficos sobre o aquecimento global. Ela pode — e deve — estar profundamente conectada aos territórios, à cultura e ao conhecimento vivo das comunidades. Trazer para a escola os saberes tradicionais sobre plantas, o cuidado com o solo, os ciclos da natureza e as histórias que brotam da terra é uma forma poderosa de construir uma educação enraizada e transformadora.
Integrar esses saberes nos espaços educativos exige ir além do currículo oficial e abrir espaço para pedagogias decoloniais, que valorizam os saberes locais, a escuta, a experiência sensível e o vínculo com o território. Isso inclui convidar lideranças indígenas, quilombolas e camponesas para dialogar com estudantes, transformar o pátio em horta comunitária, estudar as plantas do entorno e reconhecer que há muitas formas de conhecer o mundo — não apenas a científica ocidental.
A abordagem da educação libertadora, inspirada por Paulo Freire, propõe que o conhecimento seja construído em diálogo com a realidade concreta das pessoas. Nessa perspectiva, ensinar sobre plantas pode significar debater soberania alimentar, justiça climática, racismo ambiental e o direito à terra — tudo a partir das vivências da comunidade.
Há também práticas inspiradoras em diversas partes do mundo. Na Bolívia, algumas escolas indígenas integram o conceito de ecologia cultural, ensinando as crianças a identificar plantas medicinais e suas ligações com as cosmovisões andinas. No Brasil, experiências de permacultura indígena combinam técnicas tradicionais e agroecológicas para reflorestar, alimentar e educar. Em bairros periféricos da África do Sul, jovens participam de hortas urbanas educativas onde aprendem tanto sobre cultivo quanto sobre justiça social e identidade.
Estas iniciativas mostram que o saber que nasce da terra pode florescer também nas escolas. Quando reconhecemos que cultura é viva e está presente no cotidiano, ampliamos o que entendemos por educação e criamos espaços mais inclusivos, diversos e conectados com os desafios do presente.
Conclusão: Plantas como Futuro, Memória e Luta
Ao longo deste texto, vimos como as plantas não são apenas elementos naturais, mas agentes políticos, culturais e espirituais. Elas estão nas mãos de quem resiste, nos corpos de quem cuida, nas palavras de quem transmite saberes. Plantar uma semente, proteger uma árvore, partilhar um chá ou cultivar uma horta pode ser, em muitos contextos, um gesto de protesto e de reconstrução de mundos.
Quando comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, camponesas — e também comunidades urbanas racializadas — cuidam das plantas, estão a preservar muito mais do que a biodiversidade. Estão a manter vivas formas de habitar o mundo que desafiam o extrativismo, o racismo ambiental e a homogeneização cultural. Estão a dizer que há outros modos possíveis de futuro.
Fica então um convite à reflexão:
O que podemos aprender com quem nunca rompeu a relação com a terra?
Como seria uma sociedade que escuta mais os saberes das florestas, das ervas, dos quintais, das mãos enrugadas que colhem e preparam sem pressa?
E mais do que aprender, é preciso agir.
Cultivar – sementes, relações, solidariedade entre humanos e não humanos.
Preservar – os biomas, os saberes e as formas de vida ameaçadas.
Escutar – as vozes que historicamente foram silenciadas, mas que continuam a ecoar no som das folhas, nos cantos, nos terreiros, nas aldeias e nas ruas.
As plantas estão em protesto. Cabe a nós escutar — e responder com compromisso, respeito e ação.
- Jardinagem para Saúde Mental e Recuperação de Traumas - maio 30, 2025
- Jardinagem Espiritual Para Quem Não Tem Quintal - maio 30, 2025
- A Linguagem das Plantas: Como Histórias, Canções e Rituais Preservam o Conhecimento Botânico - maio 28, 2025