Introdução
Plantas selvagens comestíveis são espécies que crescem espontaneamente na natureza, sem cultivo humano direto, e que podem ser usadas como alimento. Estas plantas variam de folhas e flores a raízes, frutos e sementes, muitas vezes ignoradas por sistemas alimentares modernos. São resilientes, adaptadas ao ambiente local e, em muitos casos, extremamente nutritivas.
Antes do surgimento da agricultura industrial, a coleta de plantas selvagens era uma prática central para a sobrevivência humana. Ao lado da caça e da pesca, a forragem — ou colheita de alimentos da paisagem natural — sustentava comunidades em todos os continentes. Esse conhecimento, transmitido de geração em geração, envolvia saberes ecológicos profundos, associados à estação do ano, ao ciclo das chuvas e aos ritmos da terra. Em muitos casos, ainda é assim.
Nos dias de hoje, este tema ganha nova relevância. Em tempos de crise climática, perda de biodiversidade e insegurança alimentar crescente, o reconhecimento do valor das plantas comestíveis selvagens surge como uma resposta prática e cultural. Além de oferecer alternativas alimentares acessíveis, estas plantas ajudam a reconstruir ligações entre pessoas e ecossistemas. A prática consciente da coleta promove autonomia, educação ambiental e respeito pelas tradições locais.
Este artigo explora como diferentes culturas ao redor do mundo continuam a praticar — ou estão a redescobrir — a arte da coleta de plantas selvagens comestíveis. Em vez de tratar o tema como curiosidade gastronômica, propomos uma abordagem que valoriza a diversidade cultural, os saberes tradicionais e as práticas sustentáveis, com exemplos da África, Ásia, Europa, América Latina, América do Norte e Oceania.
África: Saberes locais e resiliência alimentar
Em diversas regiões do continente africano, a coleta de plantas selvagens comestíveis continua a desempenhar um papel fundamental na nutrição e na autonomia das comunidades. Longe de serem vistas apenas como alimentos de sobrevivência, essas plantas fazem parte de uma tradição rica, transmitida por gerações, que une alimentação, saúde e cuidado com o território.
Entre os exemplos mais emblemáticos está o baobá (Adansonia digitata), árvore icónica do Sahel e de outras partes da África subsaariana. As folhas jovens são usadas como verdura, o fruto é rico em vitamina C, e as sementes produzem óleo. O baobá é considerado uma “árvore de vida”, com múltiplos usos nutricionais e medicinais. Da mesma forma, o amaranto selvagem (Amaranthus spp.) é amplamente consumido, sobretudo nas zonas rurais, pelas suas folhas ricas em ferro e cálcio. Já a Moringa oleifera, conhecida em várias regiões como a “árvore milagrosa”, é utilizada pelas suas folhas, vagens e sementes, com alto valor nutricional e propriedades medicinais reconhecidas por saberes locais e estudos científicos.
As mulheres têm um papel central neste sistema de conhecimento. São elas, tradicionalmente, que identificam, colhem, preparam e transmitem o uso das plantas comestíveis. Nos mercados locais, é comum ver mulheres a vender folhas de baobá secas, molhos de ervas e preparados fitoterápicos. Além disso, em muitas comunidades, são as mulheres as guardiãs do conhecimento etnobotânico, passando-o oralmente às gerações seguintes. Esse saber não está apenas ligado à alimentação, mas também ao cuidado da fertilidade do solo, à medicina e à organização comunitária.
Em regiões de escassez alimentar, como o Sahel, essas práticas são uma forma concreta de soberania alimentar — ou seja, o direito das comunidades de decidir como se alimentam a partir dos seus próprios recursos. Durante períodos de seca ou conflito, plantas silvestres têm sido a base de sobrevivência para muitas famílias. No sul de Angola, por exemplo, comunidades indígenas recolhem folhas de omboga e tubérculos de ondunga durante épocas de seca prolongada, combinando técnicas antigas com práticas agrícolas adaptadas.
Documentações realizadas por organizações como a FAO e estudos de etnobotânica na África Austral (como no Zimbábue e Namíbia) confirmam que o fortalecimento dessas práticas contribui não só para a segurança alimentar, mas também para a valorização cultural, saúde comunitária e protecção da biodiversidade local. Esses saberes, enraizados na terra e na experiência vivida, oferecem alternativas sustentáveis num cenário de mudanças climáticas e dependência crescente de alimentos industrializados.
Ásia: Entre tradição e gastronomia contemporânea
A prática de coletar plantas selvagens comestíveis na Ásia está profundamente enraizada em tradições espirituais, médicas e alimentares. Em vários países, o forrageamento não é apenas uma forma de subsistência ou sobrevivência — é também expressão de uma relação integrada entre ser humano, saúde e natureza.
No Japão, por exemplo, as chamadas sansai (plantas de montanha) são recolhidas na primavera e usadas em pratos como tempura, sopas e arroz. Espécies como warabi (feto comestível), fuki (peteleco) e kogomi (fiddlehead) não são apenas ingredientes, mas símbolos da renovação da vida, celebrados nos festivais sazonais. A prática da coleta de sansai está ligada ao xintoísmo e ao budismo zen, onde a simplicidade e a proximidade com a natureza são valorizadas como caminho espiritual.
Na Índia, ervas selvagens como brahmi, gotu kola, punarnava e bhringraj têm sido tradicionalmente usadas na Ayurveda, a medicina indiana ancestral. Muitas dessas plantas crescem espontaneamente em campos e margens de rios e são coletadas com base em ciclos lunares e estações do ano. Para comunidades rurais e urbanas, a coleta de plantas medicinais e comestíveis serve tanto à saúde quanto à alimentação, num sistema em que o alimento é visto como forma de cura.
Na Tailândia, a culinária tradicional incorpora uma diversidade de ervas silvestres em curries, saladas e caldos, como cha-om (folhas de acácia), pak wan (folhas doces) e diversas espécies de manjericão selvagem. Essas plantas não só enriquecem o sabor dos pratos, mas também oferecem propriedades medicinais conhecidas e praticadas na medicina tradicional tailandesa. A coleta é muitas vezes feita em áreas semi-rurais e florestas comunitárias, com respeito a regras culturais de colheita responsável.
Nas grandes cidades asiáticas, o forrageamento urbano também está a ganhar espaço. Em Tóquio, há colectivos que ensinam a reconhecer plantas comestíveis em parques e margens de rios, promovendo bem-estar e reconexão com o ambiente natural. Em Bangalore, na Índia, movimentos locais têm incentivado hortas comunitárias e a redescoberta de plantas espontâneas nos quintais e terrenos baldios — muitas vezes tidas como “mato”, mas ricas em valor nutricional e cultural.
Estas práticas dialogam com sistemas de conhecimento como o Ayurveda, o budismo e a medicina tradicional chinesa, onde o equilíbrio entre corpo, mente e ambiente é central. A coleta de plantas selvagens torna-se, assim, um acto consciente de cuidado — não apenas com o que se come, mas com a forma como se vive e se relaciona com o mundo natural.
Europa: Resgate de tradições e inovação
Na Europa, a prática da coleta de plantas selvagens comestíveis vive um ressurgimento. Em muitas regiões, o forrageamento faz parte da herança cultural, agora revalorizada tanto por movimentos ecológicos quanto pela gastronomia contemporânea. Esta redescoberta equilibra tradição e inovação, aproximando as pessoas da natureza e da sazonalidade dos alimentos.
Em países como França, Suécia e Portugal, é comum encontrar famílias que ainda mantêm a prática da coleta de cogumelos, urtigas, alhos silvestres, castanhas e bagas em bosques e prados. No sul de Portugal, o uso de poejo e orégãos selvagens está enraizado na culinária rural. Em zonas da Suécia, a coleta de mirtilos e chanterelles (cogumelos) integra a vida quotidiana, com o direito de acesso à terra garantido por leis como o Allemansrätten, que permite circular e colher alimentos em áreas naturais, desde que com responsabilidade.
Esse movimento está alinhado com os princípios do Slow Food, originado em Itália, que valoriza ingredientes locais, preservação de saberes tradicionais e respeito pelo ambiente. Chefs de renome e cozinheiros comunitários têm incorporado plantas selvagens nos seus menus, promovendo sabores esquecidos e fortalecendo cadeias alimentares locais. O interesse crescente por uma cozinha mais ética e consciente impulsiona oficinas, feiras e publicações dedicadas ao tema.
Nas cidades, o forrageamento urbano também floresce. Em Londres, grupos como Fergus the Forager e colectivos comunitários organizam caminhadas educativas em parques públicos, ensinando a reconhecer plantas como ground elder, cleavers e sorrel. Em Berlim, jardins urbanos e espaços ocupados promovem o uso de ervas espontâneas, e em Amsterdã, existe uma rede de hortas comunitárias que integra plantas selvagens na produção alimentar. Estas iniciativas mostram que é possível conectar práticas ancestrais com modos de vida urbanos.
Contudo, o forrageamento na Europa também implica considerar a legalidade e a ética da coleta. As regras variam bastante entre países e até entre municípios. Em muitos locais é permitido colher pequenas quantidades para uso pessoal, mas a colheita comercial pode exigir licenças. Além disso, há preocupações ecológicas: algumas plantas estão ameaçadas, e a coleta excessiva pode comprometer ecossistemas sensíveis.
Boas práticas incluem:
Colher apenas o necessário.
Evitar áreas contaminadas ou protegidas.
Identificar corretamente cada planta.
Respeitar os ritmos de regeneração.
Partilhar saberes de forma aberta e inclusiva.
A Europa oferece, assim, um mosaico de experiências onde tradição e inovação se encontram, mostrando que a coleta consciente de plantas selvagens pode ser uma ferramenta poderosa para reconectar alimentação, cultura e paisagem.
América Latina: Diversidade biocultural
A América Latina é um território de enorme riqueza biocultural, onde a coleta de plantas selvagens comestíveis está profundamente entrelaçada com cosmovisões indígenas, práticas agroecológicas e modos de vida sustentáveis. Em diferentes biomas como a Amazônia, os Andes e o cerrado brasileiro, a relação entre pessoas e plantas vai muito além da nutrição — trata-se de cuidado com o corpo, com a terra e com o futuro das comunidades.
Na Amazônia, povos indígenas como os Yanomami, Tikuna e Kayapó utilizam uma vasta gama de plantas selvagens, muitas das quais ainda pouco conhecidas fora das florestas. Folhas, frutos, cascas e raízes são recolhidos conforme os ciclos naturais, num sistema que respeita os tempos da floresta. Plantas como a quina (usada para tratar febres, base da produção de quinino) têm sido fundamentais tanto para a medicina tradicional quanto para a farmacologia ocidental. O conhecimento transmitido oralmente permite um uso cuidadoso e simbólico, muitas vezes com rituais associados à coleta.
Nos Andes, comunidades quechuas e aymaras mantêm o uso de plantas nativas de altitude, como variedades de tubérculos, folhas aromáticas e infusões de muña e k’oa. A coleta de plantas silvestres ocorre em complementaridade com a agricultura, num sistema conhecido como chacra, que integra cultivo e paisagem nativa. Este modelo sustenta a diversidade alimentar e reforça os laços culturais com o território.
No cerrado brasileiro, um dos biomas mais ameaçados do mundo, plantas como taioba, caruru, beldroega e pequi são utilizadas tanto na alimentação quanto na medicina popular. A taioba, por exemplo, é uma planta folhosa com alto teor de ferro e cálcio, cultivada em quintais e colhida também em áreas silvestres. Já o caruru (amaranto) é uma planta espontânea que cresce em solos pobres, resistente à seca e rica em nutrientes, parte importante da dieta de populações rurais e quilombolas.
Apesar dessa riqueza, há uma ameaça crescente de perda da biodiversidade e do conhecimento tradicional. A expansão do agronegócio, a urbanização acelerada e as mudanças climáticas têm pressionado tanto os ecossistemas quanto os modos de vida que dependem deles. O desaparecimento de plantas nativas é acompanhado pela erosão dos saberes que as mantêm vivas e significativas.
Frente a isso, diversas iniciativas comunitárias e agroecológicas têm surgido como resposta. Redes como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) no Brasil, colectivos de guardiões de sementes nos Andes, e programas de etnobotânica participativa na Amazônia trabalham para valorizar os saberes locais, apoiar a segurança alimentar e fortalecer a autonomia das comunidades. Escolas rurais, feiras agroecológicas e hortas urbanas também têm desempenhado um papel importante na reaproximação das pessoas com plantas silvestres.
Essas experiências mostram que, na América Latina, a diversidade de plantas comestíveis está diretamente ligada à diversidade de culturas e formas de habitar o território. Preservar uma é proteger a outra.
América do Norte: Forrageamento urbano e movimentos regenerativos
Na América do Norte, o interesse pela coleta de plantas selvagens comestíveis tem ganhado novo fôlego nas últimas décadas, impulsionado por movimentos regenerativos, redes de alimentação consciente e uma crescente valorização do saber tradicional. De grandes metrópoles a reservas naturais, o forrageamento hoje é praticado tanto por chefes de cozinha, herbalistas e educadores ambientais, quanto por comunidades indígenas que mantêm vivas práticas ancestrais de relação com o território.
Em cidades como Nova Iorque, Toronto e Seattle, o forrageamento urbano tornou-se parte de um movimento que procura reconectar pessoas com o ambiente local. Iniciativas como passeios educativos, hortas comunitárias e guias de plantas comestíveis ensinam a identificar ervas como dandelion (dente-de-leão), chickweed e garlic mustard, muitas delas consideradas “invasoras” ou “daninhas”, mas com alto valor nutritivo. Educadores como Alexis Nikole Nelson (@blackforager) têm usado plataformas digitais para democratizar o acesso a esse conhecimento, promovendo uma abordagem inclusiva e anticolonial ao forrageamento.
Entre os povos indígenas, como os Anishinaabe, Haudenosaunee, Coast Salish e Diné, a coleta de plantas como ramps (alho-porro selvagem), fiddleheads (brotos de samambaia), camas (uma planta bulbosa rica em amido) e bagas (como huckleberries e salal) faz parte de uma cosmologia que vê as plantas como parentes. A colheita não é apenas um acto funcional, mas espiritual, orientado por princípios de reciprocidade, gratidão e cuidado. Em muitas comunidades, essas práticas estão a ser revitalizadas por jovens ativistas indígenas, que unem ecologia tradicional com lutas por soberania alimentar, justiça ambiental e reconexão cultural.
O crescente interesse pelo forrageamento também levanta questões legais e ecológicas. Em várias regiões, a coleta é limitada ou proibida em zonas protegidas, como parques nacionais, para evitar a degradação de habitats e a extração excessiva de espécies sensíveis. O caso das ramps, por exemplo, é emblemático: com a popularização do seu uso gastronômico em restaurantes de alto padrão, a planta passou a ser ameaçada em algumas áreas da América do Norte, levando a restrições legais e campanhas educativas sobre colheita sustentável.
Movimentos regenerativos procuram responder a esses desafios promovendo éticas de cuidado — como colher apenas pequenas quantidades, replantar bulbos ou sementes, evitar colheitas em zonas críticas e priorizar o uso comunitário sobre o comércio. Algumas comunidades estão a desenvolver códigos de conduta inspirados no conceito indígena de “tomar apenas o que é oferecido”, que sugere uma abordagem de escuta e respeito ao ambiente natural.
Assim, o forrageamento na América do Norte transita entre tradição e inovação, oferecendo caminhos para regenerar a relação com a terra, revalorizar saberes marginalizados e construir práticas alimentares mais justas e resilientes.
Oceania: Conexões ancestrais e soberania alimentar
Na Oceania, a coleta de plantas selvagens comestíveis está profundamente ligada a sistemas de conhecimento indígena que há milênios sustentam práticas alimentares, espirituais e ambientais. Tanto para os povos aborígenes da Austrália quanto para os Māori da Aotearoa (Nova Zelândia), o que se come não é separado de como se vive: a terra é fonte de alimento, mas também de identidade, memória e reciprocidade.
Na Austrália, o chamado bush tucker (comida do mato) engloba uma grande variedade de plantas comestíveis nativas utilizadas pelos mais de 250 grupos linguísticos aborígenes. Exemplos incluem o quandong (fruto rico em vitamina C), a myrtle-limão (folha aromática), a samphire (planta halófita usada como legume) e o yam da terra (Dioscorea transversa), colhido com ferramentas tradicionais e segundo os ciclos das estações. Esses alimentos eram e ainda são preparados de forma cerimonial, com métodos de colheita que evitam a sobreexploração e preservam o equilíbrio ecológico.
Na Nova Zelândia, o povo Māori preserva práticas tradicionais de coleta associadas ao mātauranga Māori (conhecimento ancestral), como o uso de pikopiko (brotos de samambaia), kūmara silvestre, e plantas medicinais como a kawakawa. A recolha é guiada por princípios como o kaitiakitanga (cuidado e proteção da terra) e o whakapapa (linhagem/ancestralidade), que estabelecem vínculos entre plantas, pessoas e espiritualidade. As plantas são consideradas taonga (tesouros), o que implica responsabilidade colectiva na sua gestão e transmissão de saberes.
Nos últimos anos, têm-se multiplicado projectos educativos e culturais que visam revitalizar estas práticas em diálogo com as comunidades indígenas. Iniciativas como o Bush Food Program em escolas da Austrália, ou os jardins de mara kai (hortas tradicionais) em escolas e centros comunitários Māori, promovem o ensino intergeracional do forrageamento como forma de soberania alimentar e fortalecimento cultural. Estes programas não apenas ensinam sobre nutrição e identificação de plantas, mas também reconstroem narrativas de pertencimento e resistência frente aos impactos da colonização.
Além disso, colaborações entre indígenas, investigadores e chefs locais têm contribuído para a valorização do bush tucker e dos ingredientes tradicionais nos circuitos gastronómicos, sempre com atenção à autodeterminação das comunidades quanto ao uso e comercialização dos seus saberes e recursos.
O caso da Oceania mostra que forragear é também um acto político: de restauração, de reparação histórica e de reafirmação de vínculos entre povos e paisagens que resistem, cuidam e ensinam.
Ética, sustentabilidade e segurança na coleta
A coleta de plantas selvagens comestíveis, embora carregada de potencial educativo, cultural e ecológico, também levanta questões importantes de ética, sustentabilidade e segurança. Para que essa prática seja respeitosa com a natureza e com os povos que historicamente a mantêm viva, é necessário observar princípios básicos e discutir os limites da sua expansão, especialmente em contextos urbanos e comerciais.
Princípios fundamentais de coleta consciente
Em qualquer lugar do mundo, forragear de forma responsável exige atenção a alguns princípios:
Identificação correta das plantas: muitas espécies comestíveis têm sósias tóxicas. O conhecimento detalhado, idealmente transmitido por quem já pratica a coleta, é essencial. Guias locais, cursos presenciais ou comunitários são mais recomendados que apenas materiais online.
Colheita moderada e rotativa: nunca se deve retirar mais do que uma pequena porção de uma planta ou do local. O ideal é colher de várias áreas e permitir que as plantas se regenerem naturalmente.
Respeito à biodiversidade e sazonalidade: a coleta deve respeitar os ciclos das espécies, evitando períodos de floração ou frutificação essenciais à reprodução vegetal e à alimentação de outras espécies.
Evitar áreas contaminadas ou protegidas: zonas com poluição urbana, resíduos industriais ou agrotóxicos não são seguras para a coleta. Muitas áreas protegidas, como parques nacionais, também proíbem a coleta de espécies nativas.
Questões de apropriação cultural e justiça ambiental
Um dos debates mais urgentes diz respeito à apropriação cultural dos saberes tradicionais. Muitas práticas de forrageamento que hoje ganham espaço na gastronomia ou no turismo ecológico são, na verdade, conhecimentos mantidos por povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses e outras comunidades tradicionais.
É problemático quando ingredientes, técnicas ou narrativas são usados sem o reconhecimento, consentimento ou participação das comunidades que os desenvolveram. Isso reforça desequilíbrios históricos e exclui os verdadeiros guardiões da biodiversidade.
A defesa dos direitos sobre os saberes tradicionais é uma dimensão essencial da justiça ambiental. Isso inclui garantir o controle comunitário sobre os usos comerciais, proteger o acesso à terra e combater leis que criminalizam práticas ancestrais de coleta.
Educação como ponte entre saberes e sustentabilidade
A educação ambiental e comunitária é uma via potente para construir pontes entre os diferentes mundos que se encontram no forrageamento. Escolas rurais, hortas urbanas, museus vivos, associações de bairro, projetos agroecológicos e até plataformas digitais têm desenvolvido formas participativas de ensinar a identificação de plantas, a ética da colheita e o respeito às culturas locais.
Essas ações não devem apenas ensinar “o que colher”, mas principalmente “como e com quem aprender a colher”.
Recursos e organizações por continente
África: Redes como a Alliance for Food Sovereignty in Africa (AFSA) apoiam iniciativas que valorizam a agroecologia e os saberes tradicionais.
Ásia: No Japão, o Sansai Association promove o uso sustentável das plantas nativas. Na Índia, centros ayurvédicos tradicionais como o FRLHT trabalham com botânica medicinal.
Europa: Grupos como a Wild Food UK oferecem formações éticas de forrageamento. Na Suécia, o direito de acesso à terra vem acompanhado de guias públicos de boas práticas.
América Latina: Redes como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o Projeto Cerratinga unem conservação e soberania alimentar.
América do Norte: Organizações como a Indigenous Food Systems Network e projetos como o Urban Foraging Guide promovem práticas conscientes em contextos urbanos e rurais.
Oceania: Iniciativas como o Bush Tucker Garden Program e os mara kai Māori reforçam o valor cultural e ambiental do forrageamento indígena.
O forrageamento ético e sustentável começa com escuta, cuidado e compromisso com o futuro coletivo. Ao colhermos com consciência, também semeamos relações mais justas entre pessoas, culturas e paisagens.
Conclusão: Entre territórios e saberes, uma prática viva
Ao longo deste percurso por diferentes continentes, vimos que a coleta de plantas selvagens comestíveis não é apenas uma prática de sobrevivência ou de moda culinária. É uma linguagem viva entre pessoas e territórios, que se expressa em formas diversas — do bush tucker aborígene na Austrália à coleta urbana de dente-de-leão em Nova Iorque, passando pelas florestas da Amazônia, pelos campos escandinavos e pelos templos budistas no Japão.
Forragear, em todos esses contextos, envolve mais do que colher folhas, raízes ou frutos. É uma forma de escuta ambiental, de reconhecimento dos ciclos naturais e de valorização dos saberes que foram historicamente marginalizados. As práticas locais, muitas vezes lideradas por mulheres, anciãos e povos indígenas, revelam estratégias de resiliência alimentar, cuidado comunitário e resistência cultural que desafiam os modelos agrícolas industriais e a desconexão urbana com a natureza.
Mantê-las vivas — e adaptá-las aos desafios contemporâneos — é uma tarefa colectiva. Isso exige práticas informadas, éticas e inclusivas, que respeitem tanto o equilíbrio ecológico quanto os direitos culturais de quem carrega essas tradições. O forrageamento pode, sim, fazer parte de uma alimentação mais sustentável, desde que praticado com atenção às suas múltiplas camadas de significado.
Por isso, o convite final é: conheça as plantas do seu entorno. Descubra os saberes das comunidades que habitam ou habitaram o seu território. Participe de oficinas, caminhe com grupos locais, aprenda com quem já pratica. E sobretudo, colha com respeito — porque forragear é também cuidar da continuidade dos ecossistemas e das histórias que neles florescem.
Recursos complementares
Para quem deseja aprofundar o conhecimento e praticar a coleta de plantas selvagens comestíveis com segurança e consciência, reunimos uma lista de recursos úteis divididos por categorias:
Guias regionais de plantas comestíveis
Europa: The Forager’s Handbook (Julia Lawless) — guia prático para identificar plantas comuns em zonas temperadas europeias.
América do Norte: Edible Wild Plants: Wild Foods from Dirt to Plate (John Kallas) — referência para coletar na natureza americana e canadense.
África: Wild Food Plants of Southern Africa (M.J. Hutchings) — compêndio ilustrado das plantas locais comestíveis e seus usos tradicionais.
Ásia: Wild Food Plants of India (Chandra Prakash Kala) — detalha espécies silvestres usadas em diferentes regiões indianas.
América Latina: Plantas Comestíveis da Amazônia (Paulo J. C. de Mello) — catálogo das plantas amazônicas com informações culturais.
Oceania: Native Australian Bushfoods (Jennifer Isaacs) — guia para identificar e usar plantas nativas australianas.
Organizações comunitárias e ONGs
Alliance for Food Sovereignty in Africa (AFSA)
Wild Food UK
Indigenous Food Systems Network (América do Norte)
Articulação Nacional de Agroecologia (Brasil)
Greening Australia (Oceania)
Essas instituições promovem educação, práticas sustentáveis e defesa dos direitos ligados ao uso tradicional de plantas.
Livros, documentários e podcasts recomendados
Livro: Braiding Sweetgrass (Robin Wall Kimmerer) — mistura ciência e sabedoria indígena sobre plantas e ecologia.
Documentário: In Search of Lost Taste — explora a redescoberta de plantas silvestres em diferentes culturas.
Podcast: Wild Food Podcast — entrevistas com forrageadores, chefs e ecologistas ao redor do mundo.
- Jardinagem para Saúde Mental e Recuperação de Traumas - maio 30, 2025
- Jardinagem Espiritual Para Quem Não Tem Quintal - maio 30, 2025
- A Linguagem das Plantas: Como Histórias, Canções e Rituais Preservam o Conhecimento Botânico - maio 28, 2025